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Sem lodo

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Saiba você que eu também afundo. Eu, a mulher sorridente da foto nas redes sociais. Tenho olheiras. Você não as conhece porque aqui, nas redes sociais, sempre estou esterilizada por um corretivo. Tem dias que me arrasto, que ando feito um autômato, que me afogo em pensamentos ruins. Nestes dias não faço selfie. Nem suporto me ver na tela do celular. Os cabelo brancos aparecendo nas têmporas. As manchas na pele. Tudo grita em alta definição e mais megapixels do que minha autoestima suportaria. Mas quero que você saiba: eu também afundo. Eu, a mulher das palavras bonitas? Tem horas que estou tão muda que escuto o meu vazio. Tão assustada que me julgo incapaz de atravessar uma rua. Tão perdida que nem sei mais onde mora minha vontade. Nestas horas não gravo vídeo. Se pego o celular é pra me anestesiar com conteúdos banais e fugazes. Coisas que não tenham poder nenhum de resvalar numa ferida. Risadas ilusoriamente gratuitas que custam minha distração de mim e do que não posso mais. Mas pre

Pé Sem Pé

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Aonde vão os pés de meia que desaparecem? Não posso conviver com esta incógnita. Debruço-me sobre a bacia de plástico onde eles moram: os pés de meia abandonados. Tudo estava tão certo, eram tão iguais um pé e outro. Mas, do nada, inexplicavelmente, absurdamente, um deles se foi. Dissolveu-se no ar. Transportou-se para outra dimensão. Não está na casa embora não exista meio de ter saído. Já busquei em cada canto improvável do guarda-roupas e até mesmo em locais menos estudados como atrás da máquina de lavar. Fui além e num impulso desesperado procurei nas gavetas da cozinha. Tamanha minha incapacidade de aceitar a tragédia do pé de meia desaparecido. Exausta, sentei-me no chão da área de serviço e chorei. Dentro da bacia de meias sozinhas uma metáfora gritava  para mim sem saída: por que anda tão  impossível o amor? * * *

Humanos S.A.

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Vem humanizar o humano... nas empresas, nas escolas, nas lojas, supermercados, na economia, na política... Vem humanizar o humano que ele anda murcho, descuidado, calejado de performances e lucros  e desigualdades e ambições. Vem dar água, dar abrigo, preservar o humano que lá se vai esgotando e matando o planeta. Vem acordar os poderosos do humano suicídio. Vem gritar na praça, nas ruas, nas janelas dos prédios, contra a desumanização do humano. Vem quebrar a régua onde o humano nunca alcança. Vem desautorizar esta dívida eterna chamada meta que obriga o humano a esfolar o humano. Não joga sequer um graveto na fogueira que consome gente, onde quem tem muito tem sempre mais. Interrompe com seu próprio corpo este círculo vicioso: dinheiro fazendo dinheiro no moedor de afetos. Não dá um passo se isto arrastar alguém.  Se nega às pequenas violências cotidianas impulsionadas pelo medo. Fala alto do massacre que você assiste, da fogueira alimentada de desgaste e infelicidade em nome da sobr

O fim do humano

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Vem humanizar o humano... nas empresas, nas escolas, nas lojas, supermercados, na economia, na política... Vem humanizar o humano que ele anda murcho, descuidado, calejado de performances e lucros e metas e desigualdades. Vem dar água, dar abrigo, preservar o humano que lá vai se esgotando e matando o planeta. Vem acordar os poderosos do humano suicídio. Vem gritar na praça, nas ruas, nas janelas dos prédios, contra a desumanização do humano. Vem quebrar a régua onde o humano nunca alcança. Vem desautorizar esta dívida eterna e o uso do humano pelo humano. Nem precisa vir. Faz um gesto aí do seu canto, na sua esquina, no seu escritório: na direção do mais humano. Não joga sequer um graveto na fogueira que consome gente, onde quem tem muito tem sempre mais. Interrompe com seu próprio corpo este círculo vicioso: dinheiro fazendo dinheiro no moedor de afetos. Mostra esta inteligência humana que te fez um bicho quase divino. Não sobe mais nenhum degrau. Onde foi preciso largar a mão dos ou

Sobre

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Não é sobre o que fazer, sobre a brutal necessidade de ser o que não se é. É sobre a forma do ir. Me arrastar na poeira é o meu não ir. Agarrar a menina pela gola do vestido e obrigá-la a olhar para o que falta, para o que ela ainda não é ou já não é mais... o meu não ir. Mosca se debatendo no vidro muito limpo e transparente da neurose. Empurrada pela dor de nunca bastar, nunca estar inteira, nunca estar pronta. Não é sobre o mestrado, o doutorado, a especialização em sei lá o quê. Não é sobre o emprego, sobre o prêmio, sobre a grana no final do mês. É sobre o prazer de conduzir-me com doçura pela estrada menos esburacada. É sobre a generosidade de dizer a mim mesma que será leve. Será tudo desde que seja com carinho e será nada se for de novo cortando a pele. Porque não é sobre destino. É sobre este cacoete nascido do trauma quando precisei caminhar descalça sobre pedras. Desde então já dei muitas provas de que sei me mover na dor, o meu não ir. Mas já vejo a delicadeza dos meus pés

Não te assustes mais

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Que o mundo não mais te assuste, criatura fantástica. Que os pavores de existir não mais te assaltem de madrugada e carreguem teu sono para além das pálpebras inutilmente fechadas. Que a mente não te assombre com seu falatório insalubre sobre as tragédias que hão de vir. Que as paredes sujas do aquário não iludam seus olhos de peixe. Não és tu que faltas. Não és frágil e impotente e sobretudo não estás sozinha. A caverna é fria e assustadora mas em algum lugar sabes que não estás lá dentro. Tu sabes. Pisca com força os olhos que as paredes desaparecem. Desautoriza o medo enroscado feito serpente em tua garganta. É só um fantasma mal-acabado feito de papelão com restos de dores superadas. Percebes que ele é só um barulho que se reedita sempre que alcanças o teu silêncio divino. Não temas o pobre e repetitivo espetáculo de horror que te acusa de inviável. Tu não és inviável. Tu és eterna criatura feita da matéria das estrelas. Tens mil vezes o tamanho que imaginas e cem mil vezes o taman

Move

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A nada leva o fazer se é sobre a brutal necessidade de ser outro. A nada leva o fazer se ele esconde a impossibilidade de estar. Se é sobre fugir.  Se é sobre desamor. A lugar nenhum leva. Me arrastar na poeira é meu não ir. Agarrar minha menina pela gola do vestido e obrigá-la a olhar para o que falta é meu não ir. Fazê-la mover-se pelo pavor de quem ela ainda não é ou não pode mais ser... é o meu não ir. Viver de sustos. Meu não ir. Mosca se debatendo e se desgastando contra o vidro muito limpo e transparente da neurose. Fazer-me andar porque nunca basta, nunca estou inteira, nunca estou pronta é meu não ir. Não é sobre pós-graduações, especializações, diplomas, atestados de valor. Não é sobre reconhecimentos ou um corpo mais magro. É sobre, já senhora de tantas histórias, aprender o prazer de conduzir-me com doçura. É sobre o cuidado de dizer a mim mesma que nada devo e pode ser leve. E será tudo desde que seja de veludo e será nada se for de novo marcando a pele. É sobre deixar na